segunda-feira, 25 de agosto de 2014

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O Bicho burro



Trabalhador e honesto aprendera com a mãe que o trabalho dignifica o homem. E a mulher também. Isso, porém, não seria motivo pra não fazer sua fezinha nos jogos. Só assim para sair daquela vidinha previsível. Sonhava com um bicho, ou ouvia de soslaio alguém mencionar que sonhou com um, ia lá e jogava. Tinha poucas posses e muitos sonhos. Por isso ambicionando algo maior jogaria na mega da virada naquele dia. Todo mundo jogava, o prêmio era grande, e o melhor, não acumulava. No intervalo do almoço, passou no brás, tomou um pequeno com pastel de vento, foi à Rainha da Sorte e fez sua aposta no jogo do bicho, no burro.  Sua referência para a aposta decerto foi o jumento que passou a noite berrando em sua rua. Haviam falado que jumento relinchando perto de casa era sinal de morte. Preferiu pensar que era sinal de sorte, e quem sabe naquele 31 de dezembro receberia sua visita. O bicho corria às 15h e com o troco restante da aposta, fez dois jogos na mega. Voltou ao trabalho e saiu às cinco. Foi à banca pelo resultado. Deu burro! Ganhou 600 Reais. Cem vezes o valor que investira. Arrependeu-se por não ter jogado tudo o que tinha no bicho. Papel de burro. Conformado, vai pra casa e avisa a noivinha sobre o prêmio. Pra comemorar iriam jantar fora naquele réveillon. Enquanto ela se apronta, ele senta no velho sofá apoiando os pés no móvel central que porta retratos. Saem às 09 da noite. Desacostumados a comer fora, pedem um parmegiana, prato popular e garantido. Dali iriam à casa de um parente. Chega o jantar. Ela delicada, corta o filé em pequenas fatias. Ele esfomeado devora o prato como fosse morrer logo mais. Na TV do pequeno restaurante, o sorteio da mega é transmitido ao vivo. Só lembrou que jogou quando viu os seis números que havia apostado na tela. A data de nascimento dos seis irmãos. O prêmio recorde de 80 milhões seria dividido entre três apostadores. Pasmo, de boca cheia, suspira involuntariamente e se engasga. Toma um gole de coca para desentalar, mas o gás do refrigerante sai pelo nariz. A essa altura, já está de pé fazendo gestos para baterem em suas costas. Sem ar, aperta a mão da noivinha que não sabe o que fazer. Dois garçons apertam-lhe o abdômen. Ele cai. Duro. Olhos abertos. As pernas ainda tremem involuntariamente. A noiva chama seu nome, uma, duas vezes. Bate em seu rosto. Ele sente as tapas cada vez mais leves. Não enxerga mais nada. Pensa ouvi-la falar que vão se atrasar para a comemoração. Tenta em vão se agarrar ao último resquício de consciência. Sente um beijo de anjo na testa. Um sinal de boas vindas. Está num lugar confortável. Flutua perplexo no escuro. Um perfume familiar permeia o espaço. Força os olhos tentando abri-los. Sente outro beijo, ouve sussurros distantes. Finalmente consegue abrir os olhos e percebe o gato a lhe lamber o rosto. Vê então que está no velho sofá da sala ainda com a roupa do trabalho. Sorri feliz e atordoado. Naquela noite, sabia, não comeria filé à parmegiana.

05/09/2013

Meio fim

Meu fim foi logo quando criança, com minha mãe solteira, fugindo com o padastro. Não restou nem lembrança. Meu fim foi ter que ficar com a minha avó Santina, nesse eterno agosto, nessa chuva fina. Meu fim foi ser mal-criada pelo desgosto dessa avó, vivia maldizendo o ex-marido. Chegava a dar dó. Meu fim foi aprender a ser malandra e esperta, senão nem comer eu comia naquela casa. Vivia aberta. Meu fim foi ter sempre que usar minha pouca roupa nessa casa tão cheia de gente. Parecia criança carente. Meu fim foi não ter cabeça oca, sabia pedir com o dedo na boca. Meu fim foi nascer bonita e crescer gostosa. Mercadoria rara, joia luxuosa. Meu fim foi assumir a boate quando minha vó morreu. Sobrou para mim o que já era meu. Meu fim foi saber fazer o serviço certo, e deixar os homens apaixonados, principalmente os casados. Meu fim foi inventar de vender outras coisas além de bebida, só pra agradar clientela com as coisas boas da vida. Meu fim foi ter confiado naquela bicha invejosa do Arnold. E ela me caguetou, aí a vida desandou. Meu fim vai ser agora nesse presídio, pagando cada besteira que fiz. Meu fim também vai ser a desgraça de muita gente que só comigo era feliz. Sei que vivi demais, até a Deus agradeço. Mas o que eu sempre quis, foi um outro começo.  

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Fim

Quando teve certeza que estava descarregada.
Quando ousou contar a verdade.
Quando acordou e resolveu usar a corda.
Quando acertou sozinho a mega-sena acumulada.
Quando decidiu comprar um carro sem air bags.
Quando decidiu escrever o próximo livro.
Quando depois de meses, ela lhe cumprimentou sem abraço.
Quando procurou a última dose, e encontrou.
Quando pagou a última prestação do plano funerário.
Quando descobriu como ganhar dinheiro fácil.
Quando teve certeza que o certo era o verde.
Quando aceitaram ajuda do FMI.
Quando achou que sempre poderia recomeçar.
Quando acabou o espaço em branco na folha.

Alexandre Revoredo/2013

Bem dito.

Bendito e maldito, o poeta.
É nisso que acredito,
e por isso a poesia conquista.
Mas deve o artista sê-lo sem saber
e em sua inocência, tudo conhecer.
Sua verdade é o mundo que há de ver.
Espalhar no espaço o que há de bonito
esse é seu ofício bendito.
Só não deve o poeta
amaldiçoar sua arte.
Fazer dela somente artifício
não deve ser sua parte
mas a sua maldição.
Deveria contar a sorte?
Cantar a morte?
Deveria ou não?
Que faça e que mostre
o lado escuro das coisas
o sul e o norte
a força do fraco
a fraqueza do forte.
Que cometa o delito
e faça valer seu dever maldito.
Pois há muitas verdades na arte,
ou mentiria a arte
artificialmente.
Mente-arte-ficcional.
Artimanha fantástica da vida real.
Correnteza direta para um mundo espiral.

A arte não mente
só dissolve a gente
qual água no sal.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Nadando no terraço: relatos de uma primeira vez.


Lembrei da minha primeira vez, aliás, nunca esqueci, sequer uma vez. Romântico e propenso à fantasias ousadas, tive a sorte de ter sido com a primeira namorada. Nathália, ou Ná, como me foi apresentada. Eu a chamava de Flor. Apelidos do amor. Eram sete da noite e toda a família (pai, mãe, os irmãos e o cachorro) assistia a novela. Dessas dirigidas pelo Jorge Fernando, ou o Falabella. Estávamos no terraço. As Luzes apagadas. O ventilador amenizando o mormaço. A família concentrada na TV. E a gente se distraindo, não queríamos nem saber. Estávamos de pé. Ela, de saia curtíssima, fazendo jus aos seus perfeitos 1,60 m. A cidade quente, tanto quanto a gente. Ela encostada, acuada na parede, beijos apertados para abafar os gemidos descuidados. Nos movimentávamos numa harmônica dança nervosa. Sexo em verso e prosa. Como se tivéssemos ensaiado todos os passos. Preenchíamos o espaço. De frente, de costas, peito, borboleta. Nado sincronizado no terraço de casa. Amor que nadava. Discretos, calados, acima de qualquer suspeita. Na sala, a família noveleira, rindo. E nós enrolados nos nós do novelo do amor. Jamais esqueci o frisson e o torpor. O terceiro ato foi na cozinha, jantamos felizes e desconfiados, nos bolinando por baixo da mesa. Enquanto todos comiam, ela chupava laranjas, me olhando com um cinismo sacana. Ah! Saudosos anos. E nem sequer tínhamos planos. O namoro girou o ciclo natural. Paixão, ardor, amor, ciúmes, brigas, dor. Começamos no primeiro dia que nos vimos e terminamos no último, saímos. Nada de amor crescente, minguante. Mas um amor daqueles, avassalador, conexo, tanto quanto nosso sexo. Amor de flor-da-idade sempre deixa um marco de saudade. 


(esta é uma obra de ficção, ou fricção, qualquer semelhança com fatos ou nomes terá sido mera coincidência)

domingo, 30 de junho de 2013

Sobre circos, bobos e côrtes.



Vinte séculos atrás
Numa Roma dominada
Por gente dissimulada
Foi criado um esquema
Pra que o povo não notasse
Nem sequer desconfiasse
Do verdadeiro problema

Pra que enfim continuasse
As falcatruas políticas
Foi criado um estratagema
Pão e circo ao povaréu
Para acalmar os ânimos
Nem atrapalhar os planos
Dos donos desse cartel

Construíram uma arena
Onde jogavam sem pena
Homens, carrascos e feras
Para se degladiar
Nessa luta desalmada
A massa extasiada
Chegava a delirar

Era briga de espada
Morte de morte matada
Contra o homem condenado
O povo manipulado
Batendo palmas, gritando
Enquanto por trás dos panos
Seu tesouro era assaltado

Em cima da gente besta
distraidamente humana
esse esquema nebuloso
foi ficando popular
em países populosos
os governos mafiosos
começaram a imitar

Chegou nos dias de hoje
com a mesma força de outrora
só que a diferença agora
é que o sangue não derrama
a TV de agora encena
colocaram na arena
rede, bola, grana e grama

E no meio onze homens
contra onze do outro lado
invés de um pobre coitado
homens ricos, importantes
muitos deles endeusados
pelo status conquistado
são famosos de instante

Quem ali fizer mais gol
no meio daquela arena
feito astro de cinema
vira até celebridade
e o povo abestalhado
vai engolindo calado
sem ver a calamidade

Que sua pátria se encontra
e que seu governo apronta
roubando de todo lado
nosso dinheiro suado
golpe fino de ladrão
viva a nossa seleção
salve o povo alienado!

Alexandre Revoredo
30-06-2013