segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O Bicho burro



Trabalhador e honesto aprendera com a mãe que o trabalho dignifica o homem. E a mulher também. Isso, porém, não seria motivo pra não fazer sua fezinha nos jogos. Só assim para sair daquela vidinha previsível. Sonhava com um bicho, ou ouvia de soslaio alguém mencionar que sonhou com um, ia lá e jogava. Tinha poucas posses e muitos sonhos. Por isso ambicionando algo maior jogaria na mega da virada naquele dia. Todo mundo jogava, o prêmio era grande, e o melhor, não acumulava. No intervalo do almoço, passou no brás, tomou um pequeno com pastel de vento, foi à Rainha da Sorte e fez sua aposta no jogo do bicho, no burro.  Sua referência para a aposta decerto foi o jumento que passou a noite berrando em sua rua. Haviam falado que jumento relinchando perto de casa era sinal de morte. Preferiu pensar que era sinal de sorte, e quem sabe naquele 31 de dezembro receberia sua visita. O bicho corria às 15h e com o troco restante da aposta, fez dois jogos na mega. Voltou ao trabalho e saiu às cinco. Foi à banca pelo resultado. Deu burro! Ganhou 600 Reais. Cem vezes o valor que investira. Arrependeu-se por não ter jogado tudo o que tinha no bicho. Papel de burro. Conformado, vai pra casa e avisa a noivinha sobre o prêmio. Pra comemorar iriam jantar fora naquele réveillon. Enquanto ela se apronta, ele senta no velho sofá apoiando os pés no móvel central que porta retratos. Saem às 09 da noite. Desacostumados a comer fora, pedem um parmegiana, prato popular e garantido. Dali iriam à casa de um parente. Chega o jantar. Ela delicada, corta o filé em pequenas fatias. Ele esfomeado devora o prato como fosse morrer logo mais. Na TV do pequeno restaurante, o sorteio da mega é transmitido ao vivo. Só lembrou que jogou quando viu os seis números que havia apostado na tela. A data de nascimento dos seis irmãos. O prêmio recorde de 80 milhões seria dividido entre três apostadores. Pasmo, de boca cheia, suspira involuntariamente e se engasga. Toma um gole de coca para desentalar, mas o gás do refrigerante sai pelo nariz. A essa altura, já está de pé fazendo gestos para baterem em suas costas. Sem ar, aperta a mão da noivinha que não sabe o que fazer. Dois garçons apertam-lhe o abdômen. Ele cai. Duro. Olhos abertos. As pernas ainda tremem involuntariamente. A noiva chama seu nome, uma, duas vezes. Bate em seu rosto. Ele sente as tapas cada vez mais leves. Não enxerga mais nada. Pensa ouvi-la falar que vão se atrasar para a comemoração. Tenta em vão se agarrar ao último resquício de consciência. Sente um beijo de anjo na testa. Um sinal de boas vindas. Está num lugar confortável. Flutua perplexo no escuro. Um perfume familiar permeia o espaço. Força os olhos tentando abri-los. Sente outro beijo, ouve sussurros distantes. Finalmente consegue abrir os olhos e percebe o gato a lhe lamber o rosto. Vê então que está no velho sofá da sala ainda com a roupa do trabalho. Sorri feliz e atordoado. Naquela noite, sabia, não comeria filé à parmegiana.

05/09/2013

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