Era naquela cadeira do lado direito que
gostava de sentar. Já chegava tonto, mas sempre pedia a vodka. Pura. Detestava whisky, e
todo o Reino Unido. A garçonete, que não se acostumava com aquele chato, sempre
ia atendê-lo. Só ela mesma pra ir. Ninguém aguentava mais. A ladainha era a mesma de sempre. Tentava ser discreto,
mas o som gutural do idioma russo, sempre soava agressivo para aquela mulher simples.
Ele sempre encerrava seu monólogo com um "salve a república socialista da união Soviética!",
antes disso, discursava apaixonadamente sobre os grandes benefícios do
socialismo. Falava português também, aliás, misturava as duas línguas com a vodka. Frases de amor (sempre em russo) às vezes eram
proferidas, e direcionadas à garçonete. Ela entendia porque ele fazia questão de explicar. Era a
única na
cidade que ainda atendia o estranho, que sempre carregava debaixo do braço, o
livro velho com letras na capa que diziam CCCP. Era tão precário o estado
daquele livro, que constantemente as folhas soltavam-se em suas mãos. Para
isso, andava com fita durex, que jurava
ter sido invenção dos russos. Não acreditava na NASA, tinha asco pelo american
way of life, e o Sputnik e Yuri Gagarin eram seus referenciais de tecnologia e
heroísmo. Vez
qualquer incomodava algum casal que sentasse perto, mas como falava em russo,
geralmente era ignorado. Chegou a causar um constrangimento maior quando ao
sair do banheiro, segurou o braço de um cliente e perguntou: guerra ou paz?
Temendo a reação, o cliente respondeu paz. Na sua mesa, um Tolstói repousava
ao lado do copo. Até que houve aquela vez, bebera mais que o combinado e, num cochicho
ao ouvido, agarrou no braço da garçonete! Levou um empurrão e o nome de velho
tarado, em bom português. Talvez pelos ideais românticos, ou as tragédias cotidianas,
deu um tapa na mulher. Foi preso, xingando as autoridades: Capitalistas! Porcos
Capitalistas! Não portando documentos, teve que ficar detido. De noite, antes
de morrer pálido pelos inexplicáveis cortes nos pulsos, escreveu com o próprio sangue nas paredes da cela: Почему ты так со мной?. Porque
fizeste isso comigo?
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